MOsquiTIM de ANÁLISE

MOsquiTIM de ANÁLISE

Esta é uma série de ensaios sobre encontros psicanalíticos e suas possibilidades. É escrito por Tiago Santa Cruz de Andrade, psicólogo e psicanalista.

O que é terapia? E análise?

Terapia? Ah…um serviço pelo qual se paga, que dá respostas sobre como viver a vida, como findar o sofrimento, que faz correções, mudanças, algo para lidar com um momento difícil que se vive, lugar para falar de si, pra cuidar da perda, da dúvida sufocante, da angústia, do limite, do que não aceito ou não aceitam, um lugar que eu acho que não preciso e por aí vai. Terapia é palavra alienígena a quase ninguém. Psicoterapia também. Todo mundo tem um conceito, mesmo que formulado ali, na hora mesmo. Sempre um conceito diferente. O que é ótimo! Mas, essa polissemia deve operar para nos ajudar, não para nos botar perdidos. Essa série de ensaios inaugurada com esse texto se presta a isso: produzir uma orientação.

A diversidade sobre o conceito de terapia ou psicoterapia e o modo como integra o senso comum expressa ao menos duas coisas. A primeira é que são conceitos antiquíssimos e ressignificados com o tempo. A segunda é o fato de serem conceitos amplos. Até conceitos antagônicos se fizermos um estudo comparativo sobre o que já foi escrito sobre o tema.

Para que o texto fique mais curto¹, foquemos em psicoterapias (note que escrevi no plural). André Berge, em seu livro As Psicoterapias, indica uma indivisibilidade do fenômeno psíquico, mas uma multiplicidade nas “vias de aproximação” que seriam as psicoterapias. Multiplicidade que não se esgota, como aponta em sua conclusão no livro. O autor menciona que existiu terapias de choque, como faziam os sacerdotes de Esculápio ao submeter pessoas à travessia de um túnel escuro ao som de gritos aterrorizantes.

Existiu, não, existem terapias de choque. Exemplo disso é como fazem até hoje alguns grupos irresponsáveis e criminosos em suas comunidades terapêuticas, que chamam de “clínicas”, mas são verdadeiros centros de tortura e exploração no pior sentido da palavra. Há outras modalidades de pseudoterapias que poderiam ser incluídas nesta categoria, como as de tratamento moral.

Mas há psicoterapias, ou terapias com efeitos psicoterapêuticos potentes. Por exemplo, aquelas realizadas pelo uso das artes, do corpo, pela circulação no território em que habitamos ou que queremos habitar, terapias apoiadas pelo uso de substâncias psicoativas sob cuidado médico, práticas xamânicas, por hipnose…uma infinidade. E, claro, as psicoterapias pelo uso da fala em seu sentido amplo, que não é restrita a nossa capacidade de vocalização. Fala enquanto toda a expressão possível. Apesar da multiplicidade na definição de psicoterapias, há algo que se repete em todas as definições: é algo que só se realiza a partir da construção de uma relação. A relação entre a pessoa que propõe e a que busca uma terapia. A psicanálise toma esta relação (no caso, a de analisante e analista) como um dos elementos fundamentais de toda sua prática e pesquisa. Tanto quanto o inconsciente.

E análise? O conceito mais geral de análise é o ato de dividir um fenômeno – algo que queremos compreender – em partes que o compõe. Logo que conseguimos compreender suficientemente bem as partes, tentamos fazer a síntese. Juntá-las. É um jeito de entender algo e descobrir algo mais.

Aqui no texto, análise é uma abreviação de Psicanálise, que não é só uma prática, mas uma área do conhecimento fundada por Freud e seus colegas ao final do século XIX. Desde então, a pesquisa em Psicanálise² seguiu em intensa produção de explicações sobre o funcionamento psíquico e técnicas para decifrar este nosso funcionamento que são relevantes até hoje.

Fazer uma análise (psicanálise), como já mencionei antes, é realizar uma decifragem³. É explicar ou ler algo cifrado sobre nós, que não notamos claramente, mas nos afeta. Olhar para o “não nascido”⁴ em nós que ao mesmo tempo que causa sofrimento, manifesta o que desejamos. Algo sem nome. Inconsciente.

Na nossa vida cotidiana, o inconsciente está sempre presente, mas fica mais evidente em nossos “tropeços”, como diz Lacan, ou em outras manifestações humanas como delírios, alucinações, em experiências psicodélicas e sonhos. Exemplos dos tropeços citados seriam lapsos e atos falhos⁵ em nosso discurso, chistes⁶, inibições⁷ e sintomas. Nestes dois últimos casos, é onde vivemos nossos maiores sofrimentos⁸.

O que a psicanálise chama de sintoma é um conflito encoberto. Um tipo deste conflito seria entre o que se deseja inconscientemente e o que entendemos que é nosso dever, por exemplo. O que se quer sem saber e o que se pode querer. É um ponto em que tentamos – inconscientemente – conciliar o querer com o proibido segundo nossa própria lei⁹. Essas divisões conflituosas que vivemos são capazes de gerar sofrimentos das mais variadas formas: ansiedade, depressão, obsessões e compulsões, ressentimento ¹⁰, angústia, sintomas psicossomáticos…aqui cabe uma longa lista. Um ponto sensível nosso em que geralmente não nos permitimos tocar. Um tanto porque doí, um tanto também porque envolve se questionar sobre algo que não queremos abandonar¹¹. Exemplo disto é o modo como repetimos até aquilo que já reconhecemos que nos causa sofrimento¹². Há uma música de Fatel performada com Zé Manoe, chamada Como as Ondas, que ilustra lindamente nossa divisão vivida no sintoma:

Ame, faça, fuja, corra, busque mais do mesmo
Supernovidades
Guarde os seus segredos
Ou cole cartazes por toda a cidade
Com teu mapa astral, dia, hora e idade do primeiro beijo
E caia na luta tu consigo mesmo
Ou chame seu eu para fazer as pazes
[o texto se repete na música]

A música também fala do que é possível fazer com o sintoma¹³. O sintoma não diz só de algo cifrado sobre nós, mas cifrado por nós. Cabe a nós decifrar, fazer as pazes ou situar melhor como queremos lutar. Decifrar-se cabe a cada pessoa que tem ao menos uma pergunta sobre si. Por que sofro? Por que sou assim? Posso ser assim? Quero ser assim? Um mundaréu de perguntas pode ser feito sobre nós. Aliás, ênfase no verbo poder. As perguntas assustam, mas podem ser feitas. É bonito quando conseguimos fazer algo com elas fora de nossas repetições sintomáticas. As questões sobre nossa existência, assim como as modalidades de psicoterapia, são inesgotáveis. São difíceis de responder, inclusive porque envolvem sofrimento. Mas, não precisamos tentar respondê-la sem apoio. É aí que uma análise entra. E precisamos ter cuidado com terapias de choque.

Se algo específico deste texto despertou sua curiosidade, avise. Pode ser que se sua curiosidade produza um bom diálogo e até mesmo um novo ensaio no MOsquiTIM de ANÁLISE.

¹ Ufa!

² Havia escrito inicialmente que psicanálise também é ciência. Conversando sobre isso com a Profa. Carmen Beatriz Rodrigues Fabriani, ela escreveu o seguinte, que é muito mais interessante:

Psicanálise é ciência. Identifica o objeto de estudo, desenvolve um método de estudo, descreve o fenômeno, identifica suas leis (condicionantes de produção e reprodução), apresenta as manifestações do mesmo fenômeno nos mais diferentes indvíduos e situações e, por fim, garante as condições de generalização. Apenas não provoca a repetição controlada em laboratório por razões éticas. É um método de pesquisa qualitativa pautado principalmente na observação participante

De qualquer modo, esse assunto dá mais um bom texto no futuro, embora isso já tenha sido bastante discutido na ocasião do lançamento de um livro da Natália Pasternak e do Carlos Orsi em que consideraram a psicanálise uma pseudociência.

³ Esta ideia é um desenvolvimento da proposição de Lacan em que “o incosciente é estruturado como linguagem”.

⁴ Como disse Jacques Lacan em seu seminário 11, quando comparava o inconsciente freudiano e o de suas pesquisas. É interessante essa representação do inconsciente como uma gestação. O feto está ali, mas não sabemos bem como. Só quando nasce. Enquanto é gestado, integra a pessoa que gesta influenciando tudo que faz.

⁵ Quando a gente tenta dizer umas coisa, mas fala outra ou muda um pedaço da palavra queria dizer.

⁶ Uma piada, brincadeiras ou jogos de palavras com fins cômicos.

⁷ Segundo Freud, em seu livro Inibição, Sintoma e Angústia, inibição é uma limitação de uma função – como, por exemplo, a capacidade sexual ou de falar – mas que não se trata de uma patologia.

⁸ Delírios e alucinações, característicos das psicoses, podem produzir sofrimentos devastadores. Mas é algo que pode ser tratado em um outro texto.

⁹ É no ponto em que Freud diz que há uma formação de compromisso entre as partes do conflito que vivemos. Vale diferenciar aqui que essa lei do texto é diferente da lei jurídica ou qualquer outra regra construída e replicada socialmente. Trata-se de como desenvolvemos uma relação com estas leis ou regras e como ao longo da vida nos foi possível assimilá-las. É a nossa leitura e implicação com as regras familiares, das instituições com as quais nos relacionamos, etc.

¹⁰ Aqui ocorreu uma lembrança do livro da Maria Rita Kehl entitulado Ressentimento.

¹¹ Algumas áreas do conhecimento psicológico chamam isso de ganho secundário. Em psicanálise é chamado, dentre outras coisas, de gozo ou modos de gozo. Freud também nomeou de satisfação inconsciente… isso aqui dá mais um texto aqui, viu?!

¹² As repetições são também uma outro modo como o inconsciente se manifesta, também muito explorado por Freud e quem seguiu com sua pesquisa.

¹³ Essa música é realmente linda. Escutem se puderem. Tá na internet.